terça-feira, 18 de abril de 2017

"O autismo é uma forma de o mundo nos dizer que temos muito pouco sob controlo"

Extrato de entrevista a Valério Romão, escritor. Nasceu em 1974 em Clermont Ferrand, na França, e aos dez anos veio para Portugal, para Tavira, onde desatou a ler na biblioteca da Gulbenkian. Hoje já poderia ir para a Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, com que a cidade homenageia o seu heterónimo de Pessoa. Publicou há cinco anos o primeiro romance, Autismo, rapidamente esgotado, que no ano passado foi finalista do Prémio Femina em França. Chega agora às livrarias a segunda edição, enquanto ultima o romance que envolve a doença de Alzheimer, com o qual fechará a trilogia Paternidades Falhadas. Contista e dramaturgo, Valério Romão é licenciado em Filosofia e é informático, um tech geek.



No dia 3 de abril publicou uma crónica no Hoje Macau [jornal online]. Começa assim: "O dia de ontem, 2 de abril, é o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. O meu filho tem treze anos e com apenas dois anos e meio foi diagnosticado com uma perturbação do espectro do autismo." Aqui é realmente a sua experiência e do seu filho. Ao escrever esta crónica dirigia-se às pessoas que não compreendem, que têm dificuldade em compreender? Porque foi difícil também para si?

Sim. No fundo, ou temos contacto com autistas ou, não o tendo, estamos condicionados pelo que vimos na cultura popular sobre a figura do autista. Normalmente aparece ligada, nos filmes, a figuras mais ou menos geniais mas com uma vida muito disfuncional porque são socialmente limitados, seguem rotinas muito estritas, têm problemas em ter empatia pelos outros e em receber empatia. E isso é muito pouco, relativamente ao espetro enormíssimo de sintomas e de problemas que o autismo abarca. Na revisão 4 do DSM, o manual de perturbações e de condições psiquiátricas - saiu a 5 há algum tempo - o autismo tinha cinco manifestações distintas, ou seja, tinha ainda cinco subclasses separadas, entre as quais o autismo e o Asperger que é a forma altamente funcional do autismo, com desenvolvimento de linguagem e uma vida a priori menos condicionada. Nesta versão 5, simplesmente tiraram essas fronteiras todas e passou a chamar-se perturbações do espetro do autismo, o que me parece mais lógico porque, dando-lhe esta unidade, permite que se abarque de uma forma mais consistente uma série de manifestações que às vezes têm pontos em comum e às vezes têm distâncias quilométricas em relação umas às outras. Eu estava preocupado precisamente...

... com o estereótipo Dustin Hoffman?
Sim, porque o meu contacto com o autismo foi o Rain Man. Eu achava que os autistas, não sendo todos geniais, todos eles eram aquela figura, em doses mais ou menos diferentes. A minha grande surpresa nos anos em que tenho vivido o autismo de perto é descobrir que existem tantos autismos como autistas, quase. Todos eles são muito diferentes, é um síndrome que, ainda que muito estudado, não está de modo algum compreendido. O diagnóstico é comportamental, não há nenhuma análise, de medição de laboratório que permita saber se uma pessoa é autista ou não.

E difícil de diagnosticar, uma vez que tem tanta variedade de manifestações?
Sim, a não ser que seja absolutamente evidente, que seja textbook. Além de o diagnóstico ser difícil, e ainda assim poderíamos partir do princípio de que poderia ser evidente, o prognóstico, esse sim, é muito complicado e é sempre muito condicionado. Os bons médicos que encontrei nesta área são muito reservados relativamente ao futuro da criança que está à frente deles, daqui a dez ou 15 anos. Não sabem, de facto, porque pode progredir espetacularmente, inclusivamente sair do espetro, como pode ficar igual ou mesmo regredir.

Portanto, à situação acresce a imprevisibilidade?
E conseguir aceitar que a imprevisibilidade faz parte da vida... nós gostamos de rotinas, de coisas certas, quando abrimos a porta gostamos de entrar em casa e não numa casa que não conhecemos. Há pessoas mais ou menos organizadas mas todas têm um roupeiro, gavetas para pôr a roupa, sítios onde guardam as coisas. Isso é uma espécie de domar a natural rebeldia do mundo que nos rodeia. Foi a primeira coisa que fizemos, tentar evitar as catástrofes naturais, as doenças, tentar domar esta coisa e torná-la habitável. O autismo e o prognóstico do autismo, sendo tão reservado, é a forma de o mundo nos dizer que não temos nada sob controlo, ou muito pouca coisa.

À imprevisibilidade que é ter um filho, acrescenta-se a imprevisibilidade do autismo?
No autismo tem-se dois filhos, há dois momentos: quando ele nasce e quando é diagnosticado. São dois momentos distintos.

Falou na qualidade dos médicos, encontrou médicos muito bons e também médicos que não compreenderam?
Encontrei médicos bons, médicos maus, médicos estúpidos, charlatães, encontrei de tudo um pouco. Como é comportamental e não pode ser testado e verificado em laboratório, é uma zona cinzenta onde muitas coisas se cruzam, da nutrição aos hábitos desportivos. Toda a gente tem uma palavra a dizer sobre isto e concorre para a salvação. Alguns muito bem-intencionados mas com muito poucos conhecimentos e uma grande dose de fezada, e outros com muitos conhecimentos mas pouca empatia. Apanha-se de tudo um pouco.

É preciso estar-se preparado para isso tudo?
Ninguém está. Vai-se preparando.

Ao fim de dez anos do diagnóstico feito, essa imprevisibilidade mantém-se?
Não tanto. A partir daqui há apenas mais um grande momento de definição, a adolescência. A partir da idade adulta, mais ou menos as coisas estão definidas. A infância é a parte mais difícil e ao mesmo tempo a que dá mais esperança, porque é quando tudo pode mudar. A partir da idade adulta, as coisas de certa forma cristalizam, porque o que adquiriu provavelmente já não irá perder, e aquilo que não adquiriu provavelmente já não irá adquirir. Há sempre a esperança de que até lá surja qualquer coisa de tão milagroso como a vacina da tuberculose foi. E mesmo que não seja para o meu filho, que seja para todos aqueles que hão de vir. Tornar-me-ia muito mais feliz saber que as pessoas não têm que passar por isto.

Foi um grande sofrimento? Ainda é?
Sim, estaria a mentir se dissesse que não.

Fonte: DN por indicação de LIvresco

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