domingo, 19 de junho de 2016

Caça-fantasmas

Os exames estão a chegar. E isso é bom. Tenho dito, e reafirmo, que os alunos não merecem a polémica que se foi instalando entre provas de aferição, por um lado, e exames, por outro. Porque à esquerda e à direita, os argumentos escorregam para uma vertigem mais ou menos demagógica, que nenhuma criança merece. E, depois, é muito importante que exista uma amostragem nacional do nível de conhecimentos dos alunos portugueses. Sobretudo se, com isso, se retirarem ilações sobre a qualidade dos conhecimentos que não se resumam, como muitas vezes foi acontecendo, quase exclusivamente, a aumentar-se a carga horária de algumas disciplinas (como se essas, e só essas, fossem indispensáveis para o seu desenvolvimento), deixando conteúdos programáticos, formação de professores e a gestão dos tempos, espaços, turmas ou dinâmicas escolares "fora da equação". E se se refletir sobre os níveis, assustadoramente negativos, obtidos nos exames a algumas disciplinas, e sobre a forma com que se podem reverter.

Ora, eu receio que, enquanto a discussão se reparte entre exames e provas de aferição - com algumas pessoas com responsabilidades políticas a apelarem para que não se "traumatize" as crianças com exames e outras, igualmente com poder de decisão, a fazer com que a seriedade do ensino dependa, quase exclusivamente, dos exames - aquilo que esteja à discussão sejam argumentos ideológicos que ganham protagonismo à falta de uma ideia política: sobre as crianças, acerca da família e, evidentemente, a propósito da escola. Serão os exames - nomeadamente em anos de transição de ciclo escolar, por exemplo - uma espécie de referendo ao trabalho que as escolas desenvolvem na preparação dos alunos? Sem dúvida. Será importante que, considerando esse escrutínio (e de forma sensata), se pondere acerca da ponderação equilibrada que eles terão na nota final de um aluno, que lhe confira a importância, relativa, que eles merecem? Claro que sim. Será que os resultados globais dos exames, considerados escola a escola, deveriam servir para escrutinar a seriedade da formação que estão a desenvolver e a honestidade do modo como o fazem? Evidentemente que sim! Não seria, até, engraçado que se fizesse um ranking das escolas pouco amigas dos bons exemplos para as crianças, seriadas a partir das enormes discrepâncias entre as notas que atribuem durante o ano e aquelas que os seus alunos obtêm nos exames nacionais, de forma a que se separe a fraude da seriedade? Claro que sim. E não seria indispensável, que as aulas fossem só aulas e que aquilo que se observa nalgumas escolas - onde a "preparação para os exames" vem, por vezes, do meio do segundo período (com aulas suplementares, substituição de disciplinas consideradas menos preponderantes por outras tidas como fundamentais, e etc.), e atinge dimensões exorbitantes até à data do primeiro exame - não fosse permitido, de forma a que existisse alguma regulação numa amostragem que, de outro modo, parece estar sempre a sofrer manipulações que talvez protejam as escolas mas não protegem os alunos? Acredito que sim. E não seria, finalmente, preciso que se considerasse a nota de um aluno como resultado da parceria que se estabelece entre ele, a família e a escola, em função dos seus conhecimentos e não só dos seus resultados, e se deixasse este péssimo exemplo de, sempre que as notas dele são interessantes, a responsabilidade seja repartida, com muitas escolas a chamarem para si esse mérito; e quando ele reprova, não deixassem de existir algumas associações profissionais de professores a chamarem a atenção para a carência de conhecimentos dos alunos sem que, de forma humilde, proponham formação para alguns dos seus membros (sobretudo quando quem a devia organizar e promover, de forma equilibrada - o ministério da educação - parece ser, com imensa tristeza para todos nós, o campeão dos défices de atenção)? Claro!

Mas, seja como for, os exames estão a chegar. E é altura de pais e professores terem bom senso. Por mais que os pais - muitos deles (às vezes, a maioria) com experiências escolares muito pouco ganhadoras, e com experiências de avaliação em provas nacionais muito sofridas - ora queiram poupar aos filhos os sofrimentos das suas infâncias e os "fantasmas" que (por causa deles) foram construindo, ora vejam nos exames uma vertigem um bocadinho precipitada de, com o auxílio dos bons resultados que eles obtenham no imediato (seja em que circunstância for), imaginarem um percurso escolar pleno de sucessos (ou, também, por vezes, um aditivo precioso para alguma da sua vaidade). E por mais que os professores, sentindo que (sobretudo, nalgumas escolas) estarão debaixo de um escrutínio sufocante - que faz com que, a partir de fevereiro, alguns vejam dislexia em 85% dos alunos de uma turma (trata-se de um exemplo real!), e outros criem uma pressão às crianças diretamente proporcional ao sufoco com que vivem os resultados dos exames como fator de risco para a sua renovação contratual - nem sempre lidem com os exames com a serenidade que eles talvez não devessem deixar de ter.

É, portanto, altura de vos propor algumas ideias que gostava que considerassem.

1. Os exames são um problema! E da mesma forma que uma das funções dos filhos é colocarem problemas aos pais (obrigando-os a resolverem problemas sempre mais complexos de forma, tendencialmente, sempre mais simples), a função da escola é pôr problemas às crianças, dando-lhes argumentos para pensarem sobre eles e para os resolverem (e não as soluções com que se cria uma ideia muito discutível de sucesso). 

2. Os exames dão dores de barriga às crianças. E isso é bom. Porque por mais que todos gostássemos que não fosse assim, não há como aprender sem alguma dor. Sendo que quem hoje convive com dores de barriga e encontra forma, nos pais e nos professores, de não soçobrar a elas, amanhã ousa ser mais afoito em vez de fugir aos novos desafios para fugir às dores com que não aprendeu a conviver.

3. Nos primeiros exames é saudável que se fique um "bocadinho burro", de vez em quando. E que haja quem se engasgue nas coisas mais simples, enquanto se desembaraça como deve ser em raciocínios mais complexos. Mas os exames são como as vacinas: quanto mais aprendermos a viver com o bocadinho de stress que eles trazem, mais aprenderemos a transformar o que é tóxico em saudável.

4. Não é razoável empanturrar, nestas alturas, as crianças com explicações. Aliás, devia ser proibido fazê-lo. Como não é ponderado multiplicar aulas e aulas e mais aulas como se - fossem em vez de provas de aferição ou de exames - estivesse à discussão uma prova de vida e não uma prova de conhecimento. Aliás, sacrificar (em nome de ganhos de curto prazo) argumentos que levedem para a vida não é dos melhores exemplos que se possa dar.

5. É proibido fazer dos exames um exame à inteligência de uma criança. Todas as crianças são inteligentes! Por mais que, por défices na sua formação ou por sobressaltos que tenham ficado da sua experiência escolar, por exemplo, algumas não consigam transformar, num determinado momento, competências em recursos.

6. É saudável que um aluno tenha medo dos exames. Sobretudo porque, como todos nós, terá medo daquilo que não conhece. Mas se fugir do medo é uma belíssima forma de ficar preso a ele, insuflá-lo (como forma de nos tornarmos mais responsáveis diante dele) pressupõe que se não for à boleia de fantasmas ninguém cresce. E aqui as maiores escorregadelas, inteligência-abaixo, não são as das crianças...

7. É imprudente criar uma atmosfera escolar do género: "com os exames é que vocês vão ver!". Transformar um exame num papão é tão sensato como quando, na Idade Média, se dizia que, para além das rotas marítimas que se conheciam, só existiriam monstros e dragões. Tivessem os nossos antepassados a mesma relação com o conhecimento que algumas escolas colocam nos exames e os Descobrimentos portugueses teriam sido uma oportunidade perdida.

8. É proibido proibir de brincar na altura dos exames. Brincar arruma a cabeça, é ansiolítico e antidepressivo. Brincar a sério e livremente. Duas horas por dia. Pelo menos!

9. É proibido recorrer a aditivos sintéticos (psicofármacos, portanto) como forma de ora tornar as crianças, aparentemente, mais seguras, ora fazendo com que pareçam menos tristonhas. A forma imprudente como isso se vai banalizando, em todos os graus de ensino, quase devia merecer um controlo antidoping que, em última circunstância, ganharia se penalizasse - por maus desempenhos - muitos pais.

10. Não são razoáveis comentários alarmistas sobre os exames na escola ou na família. Ou uma atenção inflamatória do género: "estás nervoso?..." Ou um silêncio que pretende disfarçar a tensão da família diante dos exames, quando a vida se faz com eles. As crianças percebem muito bem aquilo que estáà discussão num exame. Só não percebem porque é que quem as devia sossegar dos seus medos lhos impinge em demasia.

11. Não é, finalmente, ponderado transformar as crianças em caça-fantasmas dos pais ou das escolas a propósito dos exames. E não é, obviamente, uma catástrofe que elas cresçam conhecendo os medos de quem as educa. Mas não é prudente projetar sobre elas todos eles, esperando que sejam as crianças a ultrapassar com os seus desempenhos, num determinado momento, todos os fantasmas em torno da escola e dos exames que as pessoas crescidas foram acumulando ao longo dos anos.

12. Os exames estão a chegar. E isso é bom! Mau de verdade é que quem os torna assustadores como fantasmas pareça, por vezes, ter vindo para ficar.

Eduardo Sá

Sem comentários: