terça-feira, 22 de março de 2016

Os desafios do autismo na idade adulta

Bruno toca piano e faz teatro. Monólogos de dez minutos, "uma quantidade de texto que para qualquer um de nós seria dificílimo decorar", segundo a mãe, Felismina Viana. Também faz voluntariado, a verificar as datas de validade dos produtos doados e armazenados no banco alimentar. Não há número a ganhar bicho que lhe escape. E preocupa-se com os outros: "as validades são muito importantes, porque aquilo pode ser perigoso", diz numa cadência muito própria por via do síndrome de Asperger, que lhe foi diagnosticado em miúdo. Ainda mal falava mas já conhecia as marcas dos carros e as matrículas todas do bairro, além de ter uma tendência para o isolamento que alertou os pais para "qualquer coisa que não estava bem". Hoje Bruno tem 31 anos, um curso de informática, outro de teletrabalho, e apesar da prodigiosa memória e da capacidade de desempenho, nunca conseguiu arranjar trabalho. 
Em Portugal, aproximadamente uma em cada mil crianças nasce com uma perturbação do espetro do autismo. Destas, um quarto sofrem de um défice moderado, conhecido como autismo altamente funcional ou síndrome de Asperger, que se manifestará sobretudo numa desadequação comportamental e social. Irão estudar, poderão ir para a faculdade e especializar-se mas dificilmente terão a autonomia de um adulto. "As questões comportamentais hipotecam quase sempre as suas capacidades", reconhece Piedade Líbano Monteiro, diretora da Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger e mãe de um jovem com uma perturbação do espetro do autismo de 21 anos. 

O emprego 

A família de Bruno vivia na Amadora mas mudou-se para as Caldas da Rainha à procura de um ambiente que proporcionasse ao filho mais liberdade. "Eles são muito honestos, dizem tudo o que pensam. Se ele vir um sinal de ‘propriedade privada’ no meio de um monte não o passa de forma nenhuma e ainda é capaz de chamar a polícia se me vir a passá-lo! Está a ver o que era ele andar na rua sozinho numa grande cidade e sair-se com qualquer coisa que não caísse bem… se não percebessem que ele tinha um problema… facilmente podia arranjar sarilhos", justifica a mãe, que perdeu a conta aos currículos do filho que enviou, inclusivamente para empresas com tradição na inclusão de pessoas com deficiência e nunca obteve qualquer resposta. 
A família desdobra-se em soluções para o manter ativo, que vão do desporto, à música, passando pelo voluntariado, mas nenhuma resolve a questão da autossustentabilidade. Como será quando os pais partirem? "Já pensámos abrir um café, pois ele também daria conta do recado, certamente. Talvez um café-teatro... enfim. Ideias não faltam, mas sim apoios", confessa Felismina. Claro que Bruno não poderia enfrentar sozinho esta etapa. Teria de seguir, por exemplo, as pisadas de Nuno Quintas, 25 anos, a trabalhar desde 2010 num dos postos de abastecimento da Repsol, uma das poucas empresas em Portugal com um programa de emprego apoiado para deficientes. "Nós acompanhamos e ajudamos as empresas na inclusão destes funcionários. Através de nós, a empresa também aprende a lidar com eles: a dirigir ordens de forma clara, a rotinar as tarefas, coisa que é muito importante para estas pessoas", explica Piedade Líbano Monteiro. Quando resulta, a maioria dos empregadores reconhece neles "funcionários exemplares". São "muito rigorosos e focados nas tarefas, não pedem para sair mais cedo, não pedem aumentos e geralmente fazem o seu trabalho num terço do tempo", avisa Isabel Continelli Telmo, presidente da Federação Portuguesa de Autismo. Por isso, ninguém por ali se admira que Paulo Silva, o chefe de Nuno no posto de abastecimento da Segunda Circular, em Lisboa, diga sem hesitações: "ele é exemplar. Cumpre de forma rigorosa todas as suas tarefas e quando falta… faz falta". No início, Paulo ficou apreensivo quando lhe disseram que ia ter um jovem com síndrome de Asperger na sua equipa. "Sobretudo porque desconhecia. Mas informei-me o melhor que pude e as coisas correram bem. O Nuno chega até a receber prémios de produtividade e tem o mesmo grau de responsabilidade de qualquer outro aqui", acrescenta o chefe. Nuno vem todos os dias da sua casa, na Margem Sul, de transportes para a bomba da Segunda Circular. Se houver uma greve ou perder uma ligação, parte facilmente para o plano B, nem que seja apanhando um táxi. Chegar atrasado é que está fora de questão, até porque estar a trabalhar fá-lo feliz: "Gosto de fazer as minhas funções para ajudar os meus colegas. Trabalhar é importante", remata o rapaz de poucas falas, mas que tem um curso de design e que sonha um dia sair de casa dos pais e ter uma namorada. Já esteve apaixonado, como qualquer rapaz da sua idade. Mas o Asperger é implacável no loto da correspondência no amor: "já passeamos... fomos até à praia. Mas somos só amigos". Por agora, Nuno assegurou em grande parte a sua subsistência, algo vedado à grande maioria dos portadores de síndrome de Asperger. O subsídio para deficientes pode chegar aos 400 e poucos euros mas depende do IRS do agregado familiar e do próprio beneficiário. "Se arranjar emprego uma vez, mesmo que seja apenas um estágio com termo certo, perde o subsídio para sempre", explica Piedade. "Fala-se tanto da inclusão, é uma palavra tão bonita e, no entanto… trabalhar é um direito de qualquer um de nós", lamenta. 
Em Portugal existem perto de duas dezenas de autistas empregados, mas muitos mais que estão preparados para desempenhar um ofício. "A questão não é quantos autistas estão a trabalhar mas sim quantos mais poderíamos colocar num posto de trabalho. Muitos deles têm capacidades fantásticas, mas é preciso que as empresas também aprendam a lidar com eles. Mesmo com o apoio que a associação empresta aos empregadores não há muitos interessados", lamenta Isabel Cotinelli Telmo, que além de presidente da FDA é mãe de um adulto autista com 51 anos. Mas para a mãe de Nuno, o rapaz da bomba da Repsol, esta foi uma grande vitória, apesar do emprego ser apenas um dos grandes desafios que um autista enfrenta na idade adulta. "Claro que há outras coisas que me preocupam. A sexualidade, por exemplo, já me preocupou mas depois de ir a uma conferência sobre o tema fiquei esclarecida". Até porque já sentiu o filho apaixonado: "E a fasquia deles é sempre muito alta!", diz entre risos. "Felizmente, tenho contado com a ajuda dos amigos. Ao contrário de muitos autistas, o Nuno tem um grupo de amigos que o acompanha desde a escola primária. É com eles que sai, que viaja e que fala também dessas questões. Claro que me preocupo quando chega às cinco da manhã, quando se atrasa, com o futuro, porque um dia não estaremos cá… mas cada coisa a seu tempo", diz a mãe. 

Para a vida 

"O autismo é para toda a vida. Sendo um defeito genético, não tem cura nem é possível reverter os sintomas na idade adulta. No entanto, alguns conseguem um alto nível de funcionalidade, trabalhar e, em casos mais raros, viver sozinhos, mas são poucos e tem de haver sempre um grande acompanhamento, porque eles podem esquecer-se de coisas tão básicas como pagar o IMI ou a conta da eletricidade. Nunca terão o grau de autonomia de outro adulto, apesar das suas capacidades cognitivas. Quando vivem a experiência de namoro, são geralmente casos muito acompanhados pelos pais em que geralmente o outro também é autista. Podem sentir mais empatia com este ou aquele, mas às vezes está cada um no seu mundo, focados nos seus próprios interesses. No entanto, a companhia não deixa de ser salutar, como para qualquer pessoa. A sexualidade é uma questão que não se põe com frequência, até porque a grande maioria dos autistas tem uma certa intolerância ao toque", afirma o psiquiatra Carlos Filipe. David Rodrigues, 28 anos, foi um dos tais (poucos) que saiu de casa. Não para viver sozinho – porque não gosta de "sentir a solidão", garante – mas para casa de um irmão. David pinta, faz exposições e vai vendendo muitos dos seus quadros. Na maior de todas as mostras em que participou, no Casino Estoril, conseguiu vender três telas, somando um proveito de quase mil euros, que chegou para o encher de "orgulho" e que pouco depois depositou numa loja de informática e noutra de bandas desenhadas. Define-se como "um artista", mas quando não está dedicado à sua arte faz as tarefas que qualquer outro adulto maior e responsável tem de assumir. Lava a roupa, faz comida, limpa. O caminho para a autonomia foi conquistado ao pormenor, passo a passo, ao lado dos técnicos da APSA – Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger. "A APSA é apenas um sítio de passagem, não uma casa para eles morarem até ao fim da vida. Aqui trabalham-se competências e autonomias. Trabalhamos com eles lá fora, no terreno, dentro de casa, na rua, para os preparar: andar de transportes, as tarefas domésticas, que para os outros são adquiridas naturalmente, para eles têm de ser treinadas e rotinadas "; afirma Patrícia Sousa, diretora técnica da Casa Grande (APSA). O que para os filhos dos ‘outros’ é normal, para estes jovens adultos, é um desafio enorme. 

Autonomia 

A preparação para a autonomia tem, por isso, de começar muito cedo, ainda na infância. "O que em Portugal é complicado porque não existe uma linha de continuidade a nível do ensino, ou da formação profissional e muito menos na integração no mercado trabalho. Finda cada etapa, há sempre uma grande barreira a seguir. E o que lhes resta após completarem os estudos? Ficarem em casa a deprimir? E quando os pais não estiverem cá?", questiona Piedade. 
A falada autonomia, no autismo, tem os seus limites. "Legalmente, tudo lhes é permitido. Podem votar, por exemplo. Podem herdar, se as famílias não optarem pela inabilitação mas embora alguns possam aprender a ser autónomos no quotidiano, nunca atingirão o patamar de saber gerir as suas finanças, por exemplo", adverte Piedade Libano Monteiro. A legislação portuguesa enuncia que um vínculo de parentesco não legitima familiares a assumir decisões financeiras, de gestão de bens e negócios relativamente à pessoa deficiente, salvo se a família pedir em tribunal o estatuto de inabilitação. Quando isso acontece, em caso de morte dos pais, o Ministério Público deverá nomear um curador/tutor. "O ideal, e penso que irá caminhar-se nesse sentido no futuro, é existir uma tutoria que acompanhe estes jovens na sua própria casa. Uma equipa que identifique os casos por área geográfica, por capacidades do indivíduo e que depois o acompanhe, que pague as contas, que lhe marque as consultas...". E que respeite a misteriosa e singular lente do autismo 

Fonte: CM

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