domingo, 15 de março de 2015

Ter ou não vocação… eis a questão?

Todos os anos a melhor nota de acesso à faculdade é a de Medicina.

Na minha vez, em 1991, também assim foi.

Entrei com a segunda melhor nota no curso mais desejado, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Por vocação?

Se nem hoje tenho a certeza, poderá essa variável abstrata ser titulada?

Vasculhei na Infopedia; vocação: “inclinação e predisposição para certo género de profissão, tendência; talento; jeito; queda…”

Que sabe um adolescente de 18 anos sobre o que é ser médico? Basta ter o sonho? E o motivo do sonho? Um capricho pessoal vago? Vontade de agradar os pais?

E se o critério vocacional é injusto, que dizer da desigualdade entre quem pode ou não pagar explicações aos filhos? E das notas inflacionadas?

Na minha opinião, se é irrefutável que o saber é de experiência feito, nenhum jovem pode ter a certeza absoluta da sua vocação, e isso não serve apenas para a medicina, mas para outras licenciaturas. Existe uma queda para a biologia, a matemática, as letras, as artes, mas isso não é sinónimo de vir a ser bom médico, engenheiro, professor, advogado, arquitecto. A prática laboral intrínseca à profissão é impossível de ser intuída como inata.

Muito marrona, fui sempre uma das melhores alunas do liceu, confesso. Agradava-me ser o orgulho dos meus pais. Mas gostava de todas as disciplinas, sem apetência especial. Nos testes psicotécnicos tendia para letras e artes, mas também me adaptaria em medicina, ou seja, o resultado foi um horóscopo maleável. Sensibilidade tinha de sobra. Não gostei do curso logo no primeiro ano.

Conviver com os melhores alunos do país é complicado, os egos chocam, as aulas de anatomia eram um concurso, vencia quem decorava mais páginas do tratado e sabia apontar nos cadáveres dissecados mais artérias, músculos e ossos.

Estive perto de desistir, mas persistir é um verbo que me persegue. Nos anos seguintes fiz amizades e integrei-me num curso na época excessivamente sobrecarregado por teoria. Faltava mais prática clínica, e a aprendizagem da empatia e de como lidar com os doentes e suas famílias soube-me a pouco. Talvez agora seja diferente.

Concluída a licenciatura, a seriação para as especialidades é ainda mais penosa que a entrada no curso. Nesta altura, os recém-médicos já têm uma noção do maior jeito para tratar doenças do coração ou dos olhos ou para fazer cirurgias. E um exame de cruzinhas baseado no estudo obsessivo de um calhamaço intragável, em que se mede a capacidade de decorar ou de manter o sangue frio para não ter uma branca, não me parece que possa definir quem irá ser um bom dermatologista ou neurologista.

Talvez a fórmula de avaliação dos seres humanos nem seja a questão essencial, porque esta impossibilidade de definir critérios é ubiquitária, até depois nas avaliações de desempenho laboral.

Continuo a ser pediatra porque gosto de tratar de crianças. Sinto uma extrema dificuldade em lidar com a doença aguda grave; a tal sensibilidade necessária para ser um bom médico pode a certa altura da vida ser um factor limitativo. As pessoas mudam ao longo dos anos, e podem descobrir capacidades e competências novas.

Essa é outra questão, a meu ver inultrapassável, num país cujo sistema está viciado pela excessiva burocratização, que olha para os elementos produtivos de forma estanque, separando os activos dos aposentados pelo número de anos de serviço, não permitindo uma maleabilização de horários aos mais velhos e até de competências profissionais, que permitiria que estes se tornassem elementos úteis à sociedade durante mais tempo, não se sentissem inúteis após a reforma.

Vânia Mesquita Machado

Fonte: Público

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