quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

“Gosto de cantar... mas nem sequer consigo falar”

“Menina” (como lhe iremos chamar daqui para a frente), 11 anos de idade, corpo a ficar com jeito de mulher, olhar meigo, atitude dócil, trava uma batalha desde que se conhece...

De cabeça enfiada por entre os ombros, olhos direitos ao chão, acena simplesmente com a cabeça e diz que não... não sabe porque é assim! Não sabe porque em determinados sítios e na presença de estranhos simplesmente não consegue falar. Por mais que insistam... simplesmente não consegue. Dois contextos, dois ambientes, dois comportamentos tão distintos numa só criança.

A Menina sempre foi uma criança feliz. Entra no jardim-de-infância com 3 anos de idade. É caracterizada pela educadora como uma criança muito dócil e obediente…; contudo, muito tímida e insegura. Acarinhada e protegida por todos fez o pré-escolar. Os amigos mantiveram-se e por isso o seu à vontade junto deles foi aumentando. Contudo, com os professores e adultos que desconhece ou conhece mal, simplesmente... não fala. Nas pautas foi sempre reforçada a sua capacidade cognitiva mas também alertada a sua falta de iniciativa e dificuldade em expor-se perante o grupo. Tímida, mais uma vez bem destacado em todas as suas avaliações.

Menina cresce, ouve frases que a expõem ao ridículo, insistem perante o grupo que fale e acaba por chorar... e apercebe-se que é diferente das outras meninas da sua idade. Com elas brinca, ri e chega até a cantar, mas quando entra na sala de aula é como se desaparecesse... Deixa de falar, deixa quase de existir e o desejo é que aquele momento passe muito depressa. É algo que simplesmente não consegue controlar.

Por não compreender o que se passa, a Menina começa a ficar cada vez mais triste, mais ansiosa e a gostar cada vez menos de si... O seu desempenho académico começa a ser cada vez mais fraco... durante os testes pensa não ser capaz..

Menina, outrora feliz e com vontade de cantar, hoje mais triste e quase sem conseguir falar... Quase, porque em casa e junto dos que conhece melhor canta, fala e reencontra-se.

Menina foi diagnosticada aos 6 anos de idade com Mutismo Seletivo (MS), é uma perturbação de foro emocional marcado por uma ansiedade intensa que bloqueia a linguagem falada, por vezes a expressão facial e corporal quando em determinados contextos sociais. Alguns investigadores consideram o MS como um sintoma de ansiedade social. As crianças com o diagnóstico de MS possuem todas as suas capacidades cognitivas e de desenvolvimento intactas.

O MS, segundo o DSM V (Manual de Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, oficialmente publicado em 18 de maio de 2013), foi integrado como uma Perturbação de Ansiedade – Fobia Social por tratar-se de uma incapacidade de falar numa situação social específica. Os critérios de diagnóstico são:

– Incapacidade persistente em falar em situações sociais específicas (situações em que se espera que se fale, como por exemplo na escola) apesar de o fazer noutras situações.
– A alteração interfere no rendimento escolar ou laboral ou na comunicação social.
– A duração da perturbação é, pelo menos, de um mês (não limitada ao primeiro mês escolar).
– A incapacidade de falar não é devida à falta de conhecimentos ou de familiaridade com a língua requerida na situação social.
– A perturbação não é melhor explicada pela presença de uma Perturbação de Comunicação (por exemplo, gaguez) e não ocorre exclusivamente no decurso de uma Perturbação Global do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outra Perturbação Psicótica.

Apesar do MS ter sido identificado há mais de um século (1877; Adolf Kussmaul identifica e denomina esta condição como afasia voluntária), a sua etiologia não está completamente compreendida. Esta é uma perturbação ainda pouco estudada. O que se pensa é que estas crianças possam ter uma predisposição genética para a ansiedade. Ou seja, poderão ter herdado de outros membros da família tendências ansiosas. Alguns sinais manifestam-se desde muito cedo, tais como a dificuldade de separação dos pais, alterações de humor, choro fácil, excessiva dependência dos pais, inflexibilidade, problemas do sono, birras frequentes, timidez extrema desde a infância e tendência para o isolamento.

No que diz respeito à prevalência o que se sabe é que o MS é uma perturbação rara que parece afectar menos de 1% das crianças em idade escolar. É ligeiramente mais comum nas raparigas e surge normalmente antes dos 5 anos de idade. É usualmente detectada aquando da entrada na escola quando é exigida à criança uma maior interacção social e o diagnóstico é feito entre os 3 e os 8 anos de idade.

De destacar que a incapacidade de falar não é um comportamento voluntário. Pode acontecer tanto com os pares, como com os adultos ou especificamente com um deles. Podem, ainda, existir padrões de comunicação tais como falar baixinho ou apenas com um professor ou colega de turma. Contudo, em determinados contextos consegue falar naturalmente.

Quanto mais precoce o diagnóstico e a intervenção melhor serão as taxas de remissão da perturbação. Nas formas mais avançadas e mais graves de MS as consequências deste quadro poderão ser levadas até à adolescência e vida adulta podendo evoluir para fobia social e isolamento.

Em termos de intervenção, a farmacoterapia não deverá ser recomendada como tratamento de primeira escolha. No entanto, em situações de ansiedade mais intensa é possível que exista a necessidade de introduzir medicação devidamente prescrita por um pedopsiquiatra.

Apesar de vários estudos indicarem que o MS é muitas vezes resistente à mudança, os tratamentos cognitivos e comportamentais parecem ser os que melhores resultados apresentam, sendo que esta intervenção deverá sempre decorrer envolvendo a criança, a família e a escola. Sabemos contudo, que um programa de intervenção no MS é (naturalmente) lento e é necessária uma grande sistematização reforçando sempre as aproximações sociais e de comunicação, nunca descurando o tratamento da ansiedade e o reforço da auto estima.

Para terminar…

Menina não deverá ser obrigada a falar!... Para o fazer necessitará de se sentir confiante e segura… O que só se consegue com muita dedicação e disciplina por parte dos que a rodeiam. Isto não significa ceder a caprichos e proteger ainda mais.

Não se deve desistir de estimular a interacção verbal, mas sem pressões e sem uma atitude de crítica.

Forçar a Menina a falar irá aumentar ainda mais a sua ansiedade piorando a sua dificuldade para integrar-se e comunicar.

A motivação para falar, participar, deverá ser gradual, até ganhar a confiança necessária e dar aquele, que para nós será um pequeno passo, e que para a Menina será a possibilidade e a esperança de um dia vir a mostrar os seus dotes de cantora perante todos!

Júlia Vinhas
 
Psicóloga Clínica e Coordenadora da Unidade do CADIn Setúbal
 
Fonte: Público

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